terça-feira, 18 de agosto de 2015

DEUS VIU QUE TUDO ERA BOM



Cardeal Odilo Pedro Scherer
Arcebispo de São Paulo (SP)

Na encíclica – Laudato sì. Sobre o cuidado da casa comum – o Papa Francisco observa que a crise ecológica atual precisa ser analisada a partir de vários olhares: filosófico, científico, histórico, religioso... No desenvolvimento de suas reflexões, ele próprio apresenta essas diversas abordagens, com o auxílio de especialistas em várias áreas do conhecimento. Como representante de uma religião, pede que, na explicação e na busca de solução para as questões ambientais, não se deixe de levar em conta a contribuição que as religiões têm a oferecer.

A Igreja Católica, aberta ao diálogo com as diversas interpretações do problema ambiental, deseja oferecer sua contribuição a partir do olhar da fé cristã, que tento expor aqui, brevemente, baseado na encíclica. De fato, o cuidado da natureza decorre da fé dos cristãos no Deus Criador e do respeito a ele devido. A revelação bíblica ensina que toda natureza existe por obra e graça do Criador, que viu ser “muito bom” tudo o que fez; também o homem, criado com dignidade inigualável (cf Gn 1,31).

Na obra da criação, o homem é parceiro de Deus e recebeu o encargo de cuidar e cultivar a terra e a natureza. Desde logo, fica claro que ele não é Deus, nem dono do mundo. Mas é bem essa a sua tentação constante, origem da desordem nas suas relações com a natureza: apossar-se do mundo, como senhor absoluto de tudo. Custa-lhe reconhecer que “do Senhor é a terra e tudo o que nela existe” (cf Dt 10,14); e que lhe cabe respeitar a lei interna à natureza e no mundo, assim disposta pelo Criador.

O Papa ensina que a Bíblia e a fé cristã não justificam um antropocentrismo despótico, desinteressado ou desrespeitoso das outras criaturas (nº 68). Se alguma vez assim apareceu, deveu-se a interpretações equivocadas do texto sagrado. Diante de Deus, o homem não é o único ser deste mundo a contar. Também o Catecismo da Igreja Católica ensina que cada criatura tem um valor próprio, que o homem deve reconhecer e respeitar, evitando toda relação desordenada com as criaturas (cf nº 339).

A fé no Deus Criador, único senhor do mundo, levada a sério, previne contra o risco de adorar outras criaturas ou poderes deste mundo, atribuindo-lhes um reconhecimento indevido; ou de colocar o homem no lugar do Criador, para justificar sua ganância e vontade de poder sobre as demais criaturas.

Afirmar que Deus é Criador não implica em dizer que todas as coisas existem hoje do mesmo jeito que Deus lhes deu origem: a evolução é um princípio inerente à natureza e a todos os seres; isso não contradiz a fé no Criador. No entanto, para a fé cristã, seria pouco admitir que Deus é apenas uma espécie de princípio ideal da existência de todas as coisas: a natureza e o universo inteiro não surgiram por necessidade mecânica e casual, mas por uma vontade pessoal, um ato criador, livre e soberano que, de alguma forma, se prolonga no tempo e na existência das coisas. Também a harmonia e a beleza do mundo não podem ser atribuídas ao acaso. A natureza é fruto da vontade amorosa do Criador: “sim, tu amas tudo o que existe e nada desprezas do que fizeste; pois se odiasses alguma coisa, não a terias criado” (cf Sb 11,24).

Mas se, de um lado, a fé judaico-cristã ensina o respeito e a admiração pela criação inteira, ela separa claramente as coisas: a natureza não é divina. O mundo e Deus são diversos; Deus transcende o mundo. Mesmo assim, o Criador quis o homem como seu colaborador no cuidado do mundo; por isso, o homem não pode ser reduzido a um elemento “igual” ao resto das criaturas. Ele traz a imagem e semelhança do Criador, com capacidades que lhe permitem entrar em diálogo e sintonia com o Criador e de conhecer o seu desígnio amoroso em relação à obra de suas mãos.

Ao ser humano é permitido interferir livre e responsavelmente na natureza, para colocá-la ao seu serviço, contanto que respeite a harmonia disposta pelo Criador. Para tanto, ele pode contar com a ajuda do mesmo Espírito Criador que, “no princípio”, criou o céu e a terra (cf Gn 1,1). O homem é capaz de realizar bem a sua missão e de reconhecer que nenhuma criatura no mundo é supérflua ou sem sentido. A natureza é como um livro aberto, muito bonito, onde cada elemento narra as grandezas do Criador. Bento XVI lembrou que a natureza tem uma “gramática interna”, que o homem precisa decifrar e conhecer, para melhor compreender o desígnio de Deus Criador sobre toda realidade e para um “uso sábio” da natureza, não instrumental nem arbitrário (cf Caritas in veritate nº 48).

O olhar da fé religiosa para a questão ambiental leva a perceber que as criaturas deste mundo não podem ser vistas como bens sem dono, disponíveis à posse do primeiro que as encontrar. Somos cuidadores e usuários deste mundo, enquanto nele existimos: “tudo é teu, Senhor, amigo da vida!” (Sb 11,26). E porque o Criador é também Senhor do mundo, vai de consequência que os bens da natureza devem beneficiar todas as criaturas e nenhuma delas pode ser privada do necessário para existir e viver.

Isso vale, especialmente para o ser humano: o interesse privado não pode privar os demais do necessário para viver dignamente. Vai daí que toda abordagem da questão ecológica também precisa ter em conta a justiça social e a preservação da dignidade e dos direitos dos mais desfavorecidos. Neste ponto, o papa Francisco volta à questão, nem sempre bem aceita por todos, da subordinação do direito à propriedade privada ao destino universal dos bens deste mundo (cf nº 93). Trata-se de posição consolidada do ensinamento da Igreja. A natureza é patrimônio comum da família humana e seus frutos devem beneficiar a todos os que vivem e os que ainda viverão neste planeta.


Publicado em O Estado de S. Paulo, de 11 de julho de 2015.