Prof. Dra. Paula Molinari
Quando escrevi pela primeira vez sobre o assunto na publicação Técnica Vocal: Princípios para o Cantor Litúrgico, foi pensando em comunicar-me com os cantores litúrgicos de maneira a sublinhar que o canto artístico e o canto litúrgico diferem em essência. Assim, foi só o começo de uma longa busca.
As fontes são muitas, como também são muitas as “espiritualidades”, aqui entre aspas, porque até mesmo o significado de espiritual já se configura uma miscelânea de compreensões.
Exatamente nesse fazer, iniciamos nosso texto atual, ou seja, aclarando os conceitos, limpando preconceitos e buscando unidade de sentido. Espiritualidade fica aqui entendida à partir de sua origem spiritus e que significa respiração quando relacionado a spirare e também significa a dimensão imaterial do ser humano, chamada de alma.
De maneira geral e simplificando, dizemos que quando a palavra leva no final dade, como queremos falar de espiritualidade, tem aí uma ação envolvida, daí que espiritualidade é uma ação ligada ao espiritual.
Desenvolver a espiritualidade poderia então ser entendido como desenvolver nossa capacidade de compreensão do espiritual, exercendo-a, pondo em ação essa dimensão imaterial que também está ligada ao respirar, quando entendemos esse spirare como aquilo que emana de nós através do material e traz consigo, nesse ciclo de manutenção da vida, contornos de compreensão do imaterial. Agora, diante do exposto, podemos caminhar para a exposição daquilo que pensamos sobre voz e que constitui a gênese de nossa proposição. Aqui sublinhamos que a voz é essa existência que emana unidade, que possibilita o discurso, que vivifica o significado e, que no século XVI os primeiros teólogos da linguagem chamaram de verbo. O verbo como essa proclamação, como essa emanação que dignifica a palavra, verbo como aquilo que cria e como aquilo que dá vida.
O verbo é então essa força vital, vapor do corpo, liquidez carnal e espiritual, no qual toda atividade repousa, se espalha no mundo ao qual dá vida (Zumthor, 2010, p.66) e é essa atitude que emanada em palavra constitui e materializa sentidos quando professa.
E como falar do canto? Para Zumthor, (2010, p. 295) o canto exalta a esperança de que um dia uma palavra dirá tudo. Ele afirma que, emblematicamente, o canto realiza esse ato de dizer tudo. Santo Agostinho nos auxilia confessando sua constante predileção pelas melodias. Diz que, por vezes, uma melodia lhe chama mais a atenção que o texto e Santo Agostinho então, sente-se culpado por ceder aos prazeres do ouvido quando dá menos atenção à palavra que à música. Para não tomarmos uma pequena frase sem compreendermos seu contexto, por exemplo, sigamos a compreender como era a transmissão de conhecimento naquele tempo, como se dava o aprendizado e quais as qualidades necessárias para um boa leitura. Para isso, ele mesmo, Santo Agostinho dirá: No Evangelho, Ele falou com voz humana, e a sua palavra repercutiu exteriormente nos ouvidos dos homens a fim de que neles cressem, e o buscassem no íntimo, e o encontrassem na verdade eterna, onde o bom e o único mestre ensina a todos os seus discípulos. Aí, Senhor, ouço a tua voz a dizer-me que só nos fala verdadeiramente aquele que nos ensina, enquanto aquele que não nos instrui, mesmo que nos fale, é como se não nos falasse. (Livro XI - 10) Naquele tempo, havia uma distinção primordial sobre o como se falava, não do ponto de vista da técnica apenas mas, de como a voz em sua função plena se fazia verbo para dar-se em canto e prenunciar, mais do que pronunciar, a palavra. Esse anúncio chegava aos ouvidos e, à partir deles, da escuta, como hoje falamos, poderia-se então, refletir, sentir, aprender e apreender. Não era a palavra escrita que ensinava e sim, a palavra proferida, no influxo vocal humano que fazia conexão com o outro e com os outros, ao mesmo tempo que aquele que dava sua voz à isso, entregava-se para o serviço.
Assim, podemos acrescentar: numa ação sacrificial. Era a exposição da vida, em seu sentido mais profundo, através da oralidade. Proferir é mais que dizer. Anunciar é mais que articular nossa materialidade do corpo para a saída de uma voz que concatena sons que são ouvidos como palavra. Não é qualquer palavra que deve ser entendida como Palavra. Quem garante essa passagem da palavra para a Palavra? Quem profere, quem diz, quem canta, quem recita, quem salmodia, quem toca um instrumento e quem escreve um texto.
Espiritualidade da voz então, é essa equilibrada noção de decorrência, de pertencimento, de conexão do material com o imaterial que a voz transcorre, presentifica ao ouvido humano e que só é possível no transcurso do tempo, na vida em comunidade, numa partilha da vida cristã que emana da voz aos ouvidos e, como na patrística, dos ouvidos para o coração. Com isso, o texto aqui apresentado é tão somente um primeiro subsídio para o trabalho em comunidade. O assunto é profundo e nos convida a refletir para, a cada passo, guiar nossa compreensão para uma ação efetiva.