terça-feira, 20 de agosto de 2013

SOLIDARIEDADE, "QUASE UM PALAVRÃO"

Cardeal Odilo P. Scherer
Arcebispo de São Paulo


A passagem do papa Francisco pelo Brasil, para a Jornada Mundial da Juventude no Rio de Janeiro, deixou profundas marcas e mensagens, já comentadas amplamente. Desejo, no entanto, retomar o pronunciamento que fez na sua visita à comunidade da Varginha, no dia 25 de julho.
Não deixa de ser eloquente que, depois de sua acolhida protocolar na Palácio Guanabara e da peregrinação a Aparecida, o primeiro pronunciamento público do papa Francisco no Rio de Janeiro tenha acontecido, justamente, na visita a uma comunidade pobre. Engana-se, porém, quem pensa que foi apenas um ato teatral do “Papa dos pobres”.
Foi daquela tribuna, do meio dos pobres da Varginha, que o Papa pronunciou o discurso social mais importante de sua passagem pelo Brasil. Palavras simples e diretas, como é de seu estilo, para que todos pudessem entender, ele falou com os pobres, mas também se dirigiu a quem tem poder e posses, em todos os níveis, locais e mundiais. Sua fala, de fato, retrata uma síntese da Doutrina Social da Igreja.
Observou o Papa Francisco que os pobres são capazes de dar ao mundo uma grande lição de solidariedade, “palavra frequentemente esquecida ou silenciada, porque incômoda”. Dispensando o texto, ele observou que o conceito de solidariedade é tido quase como um palavrão, que não faz parte de certa concepção do convívio social nem deve ser pronunciado.
A noção de solidariedade desenvolveu-se, com sempre maior clareza, no ensino social da Igreja do século XX. No egoísmo e individualismo, que permeiam e regulam, com frequência, as relações sociais, cada um, cada grupo ou país é levado a reivindicar e afirmar seus próprios direitos, sem ter em conta a sua contribuição para o bem comum. Na atitude solidária há sempre a preocupação pelo bem comum. A solidariedade é um dos princípios éticos basilares da concepção cristã de organização social, política e econômica.
Não se trata de vaga compaixão, distante e descomprometida, diante dos males de outras pessoas próximas ou distantes; pelo contrário, é o empenho firme e perseverante pelo bem de todos e de cada um; uma vez que todos dependem uns dos outros, todos também são responsáveis uns pelos outros.
A solidariedade é um dever moral, que decorre dos vínculos de natureza existentes entre todos os seres humanos, membros da mesma espécie e de uma grande família; todos estão vinculados uns aos outros, no bem e no mal; a sorte de uns está ligada à sorte de todos. Estamos todos no mesmo barco.
O dever de solidariedade é o mesmo, tanto para as pessoas como para os povos. Seria alienante a  ordem socioeconômica que dificultasse ou não estimulasse a solidariedade social. Se dependemos de todos, não podemos desinteressar-nos dos outros e nenhum povo pode pensar em “ser feliz sozinho”; nem devemos esquecer, nas decisões que hoje tomamos, dos que virão a integrar, depois de nós, a família humana.
Algumas questões, como a economia, a ecologia e a família, requerem, de maneira mais clara, decisões e atitudes solidárias. A economia mundial é claramente interdependente e as decisões dos governantes da cada país precisam levar em conta também o conjunto da economia mundial. Além disso, “negócios obscuros”, tráfico, mau emprego ou desvio do patrimônio público são atitudes marcadamente anti-solidárias. Também no campo da ecologia, nossas decisões e posturas, no bem e no mal, envolvem os outros e as futuras gerações. E a família, base da vida social, é o primeiro e mais importante sujeito da educação para uma vida solidária; nela se aprende a compartilhar, a ajustar as necessidades de cada um às possibilidades e condições de todos.
Negar o princípio da solidariedade levaria também a negar uma das principais forças propulsoras da civilização, para adotar novamente a lei da selva, onde os mais fortes sobrevivem e os mais fracos são abandonados à própria sorte. Os mecanismos perversos que destroem o convívio social, só podem ser vencidos mediante a prática da verdadeira solidariedade. Só desta maneira muitas energias positivas poderão desprender-se inteiramente em prol do desenvolvimento e da paz. Se é verdade que a paz é fruto da justiça (cf. Is 32,17),  podemos afirmar também: opus solidarietatis pax – a paz é obra da solidariedade.
O papa Francisco apelou à sociedade brasileira para que não poupe esforços no combate às injustiças sociais e na luta pela inclusão de todos os seus membros. A respeito da “pacificação” de comunidades dominadas pelo crime organizado, advertiu que a pacificação duradoura e a felicidade de toda a sociedade só serão conseguidas quando não houver mais pessoas abandonadas ou deixadas à margem: “a grandeza de uma sociedade aparece no modo como ela trata os mais necessitados, aqueles que não têm outra coisa além de sua pobreza”.
Com palavras simples e mansas, mas firmes, voltou a afirmar o que já disseram, antes, outros Pontífices em Documentos do Ensino Social da Igreja: diante das intoleráveis desigualdades sociais e econômicas, que clamam aos céus, a Igreja está do lado dos pobres e não pode calar sua voz.
Em vez de palavras contundentes sobre as manifestações de rua, acontecidas mesmo durante a sua presença no Rio de Janeiro, ele se dirigiu aos jovens: “vocês que possuem uma sensibilidade especial frente às injustiças, mas muitas vezes se desiludem com notícias que falam de corrupção, de pessoas que, em vez de buscar o bem comum, procuram seu próprio benefício. Nunca desanimem, não percam a confiança, não deixem que se apague a esperança”.

É verdade, a realidade pode mudar, quando a solidariedade deixar de ser um conceito antissocial. “Procurem ser os primeiros a praticar o bem e a não se acostumar com o mal”, concluiu o Papa.