quinta-feira, 10 de setembro de 2015

MUDANÇAS NOS PROCESSOS DE NULIDADE MATRIMONIAL






Por Fernando Geronazzo

Durante coletiva de imprensa realizada na Cúria Metropolitana de São Paulo na tarde de quarta-feira, 9, o Cardeal Odilo Pedro Scherer, arcebispo de São Paulo e especialistas em Direito Canônico e Membros do Tribunal Eclesiástico explicaram as mudanças apresentadas pelo Papa Francisco, na terça-feira, 8, nas cartas apostólicas em forma de Motu Proprio ‘Mitis Iudex Dominus Iesus’ (Senhor Jesus, meigo juiz) para o Código de Direito Canônico, e ‘Mitis et misericors Iesus’ (Jesus, meigo e misericordioso), para o Código dos Cânones das igrejas Orientais, sobre os processos de verificação de nulidade matrimonial.

Participaram da coletiva Dom Sérgio de Deus Borges, moderador do Tribunal Eclesiástico Interdiocesano de Primeira Instância, o Cônego Martin Segú Girona, vigário judicial da Arquidiocese, e o Monsenhor Sergio Tani, doutor em Direito Canônico.

Dom Odilo iniciou sua fala distinguindo os termos “anulação”, como vem sendo veiculado pela mídia, e “nulidade”. “O conceito não é ‘anulação’ do casamento, que significa tornar nulo algo que existiu como verdadeiro. Mas se trata do reconhecimento da nulidade matrimonial. Existem casamentos que, desde a origem são nulos porque houve alguma falha no momento de realiza-lo”, afirmou, reforçando que, com o novo documento, Francisco não aprovou o divórcio.


“E existe um processo para a verificação se houve nulidade ou não. Muitas vezes isso já acontece quando o casamento já está desfeito, as pessoas querem casar de fato, já estão juntas com outra pessoa e querem pôr a situação em ordem, então, pedem a verificação da nulidade do vínculo anterior”, acrescentou.
Sínodo sobre a família


O Arcebispo informou, ainda, que esta medida do Pontífice não veio de repente, frisando que o Papa, na introdução ao documento, recorda a Assembleia Extraordinária do Sínodo dos Bispos, de outubro passado, sobre “Os desafios da família no contexto da evangelização”.


“Um dos assuntos muito tratados no Sínodo foi este, que seria necessário que se revisse o processo de reconhecimento da nulidade, que, até aqui, era bastante complicado, demorado, e muitas pessoas até gostariam de introduzir um pedido de reconhecimento da nulidade e acabavam desistindo de tentar pôr esta questão em ordem”, disse, informando, ainda que, após o Sínodo, o Papa, imediatamente constituiu uma comissão para a revisão dos processos. “Portanto, agora, essa decisão é a resposta àquele pedido e o trabalho daquela comissão”.

Valorizar a família

Monsenhor Sérgio Tani afirmou que a renovação das normas sobre o processo de nulidade matrimonial vem ao encontro do desejo do Santo Padre de valorizar sempre mais as famílias. “O próprio Papa Francisco vem tratando o tema da família de forma insistente e com bastante autoridade em suas catequeses semanais. É justamente este tema que o Papa quer colocar em evidência: que a Igreja continue a tratar as famílias com muito carinho e muito respeito, que esteja cada vez mais próximas delas”.


Neste sentido, o canonista chama a atenção para o fato de o Papa, com o Motu Proprio, reforçar a indissolubilidade do matrimônio. “Igreja continua a reafirmar a indissolubilidade do matrimônio da mesma forma, torna faz com que se agilize os processos para que as pessoas com matrimônio falidos possam ter a certeza da validade ou não do matrimônio contraído”.

Para o Monsenhor Tani, cuidar melhor da pastoral matrimonial também será um desafio da Igreja. Tanto que uma novidade apontada pelo documento é um acompanhamento pastoral anterior à procura do Tribunal Eclesiástico. “O Papa fala da eventualidade de se criar novas estruturas no âmbito da pastoral matrimonial diocesana, ou seja, a atenção da Igreja para com a família deve ser algo importante no trabalho do tribunal, de uma diocese e do próprio bispo”.



Proximidade

Dom Sérgio destacou três aspectos importante da reforma. “A grande preocupação da Igreja é que as pessoas possam viver um caminho de santidade e muitas delas, às vezes, estão impedidas porque não conseguem chegar ao tribunal para averiguar a verdade sobre o seu matrimônio, sobre a sua vida familiar. É um direito dos fiéis descobrir qual é a verdade sobre o seu matrimônio num tribunal eclesiástico competente”.


Outro aspecto é tornar a justiça eclesial mais próxima das pessoas. “Proximidade física, sobretudo os tribunais diocesanos, nas pessoas dos bispos, e proximidade na própria estrutura dos processos”. A terceira finalidade das mudanças é tornar os processos mais rápidos. “Não podemos pensar, que estamos favorecendo a nulidade do matrimônio. Estamos tornando o processo mais rápido”.

Os processos


O Vigário judicial é encarregado pelo bispo para receber, em primeira pessoa, as questões que dizem respeito à justiça eclesiástica e dar o devido encaminhamento. É também aquele o qual o bispo pode consultar para julgar uma sentença. Além de exercer esta função, Cônego Segú é o decano da Faculdade de Direito Canônico São Paulo Apóstolo, a primeira da área no Brasil, fundada no ano passado. Ele explicou como funciona basicamente o processo de verificação de nulidade matrimonial.


"A pessoa que tem dúvidas a respeito do seu casamento tem direito de impugna-lo", ou seja, protesta-lo, explicou Segú. O primeiro passo é a petição inicial, isto é, “colocar no papel” este pedido de verificação. Esta petição deve se enquadrar dentro de algum dos títulos da nulidade. “A parte substantiva do direito matrimonial reza que existem 29 títulos de nulidade, que são os chamados vícios de consentimento”, explicou o Cônego.

Além dos advogados, que, como no direito comum, defendem os interesses das partes envolvidas no processo, há defensor do vínculo, que age como um promotor de justiça, em defesa do sacramento. “A petição de verificação da nulidade deve ser encaminhada, em primeiro lugar, ao defensor do vínculo, que vai verificar se concorda ou não com os motivos apresentados pelo advogado para que haja nulidade. Uma vez que o defensor aceita, o juiz vai decretar a constituição do tribunal, isto é, o processo em si”, continuou o Vigário judicial.

O processo em si possui três modalidades: a breve, para causas evidentes de nulidade; o ordinário, o processo mais comum, que pode levar um pouco mais de tempo, e o documental, cuja causa de nulidade se dá por algum documento relacionado ao processo matrimonial.

A mudança apresentada pelo Papa está relacionada ao principalmente ao processo mais breve. Um caso evidente de nulidade é, por exemplo, quando o noivo, por causa de uma gravidez inesperada, foi forçado pelos pais da noiva a se casar. “Neste caso, é evidente que a pessoa disse ‘sim’ contra a vontade”, afirmou Cônego Segú. Nestes casos, como o Papa definiu na reforma, o bispo diocesano define em uma primeira instância sem apelação.
Agilidade

Ao falar sobre a agilização dos processos, Cônego Segú cita o Papa Gregório IX, que afirmava que "justiça retardada é justiça negada". "Nós estamos no campo da justiça, isto é dar a cada um aquilo que lhe pertence. Se a pessoa tem dúvidas a respeito de seu casamento, ela tem direito de impugná-lo".

Recordando o último cânon do Direito Canônico –“A salvação das almas é a suprema lei da Igreja” –, o Cônego ressaltou que o Papa reforça no documento que o vigilante desta lei suprema é o bispo diocesano. “Cada bispo diocesano é o juiz, nós [vigários judiciais] somos delegados por ele”.

“Todos nós conhecemos casais que fracassaram no casamento. Ninguém se casa para se separar ou ser infeliz. O que o Papa deseja, em última análise, é a felicidade. E nós, no Tribunal, sabemos que quem nos procura tem fé na Igreja e no sacramento, e quer solucionar sua situação.”, disse o vigário judicial, acrescentando: “Nós não anulamos nada. Declaramos que por falta de condições e requisitos não possível realizar o matrimônio”.
Sentença em primeira instância

Dom Sérgio também explicou aos jornalistas a mudança sobre a não obrigatoriedade do julgamento do processo em duas instâncias, como acontecia até o momento. “A dupla sentença surgiu em 1740 com o Papa Bento XIV num contexto muito próprio da Igreja no qual o matrimônio tinha muita relevância no âmbito civil. O direito eclesiástico regia toda a vida civil. Diante dos muitos problemas que existiam na época, esse Pontífice achou necessária uma segunda sentença”.

A alteração do Papa Francisco corresponde ao atual contexto vivido pela Igreja nesse âmbito. “O matrimônio [religioso], na maioria dos países, não tem mais relevância civil. Percebendo que as pessoas buscam a declaração de nulidade, sobretudo, em vista do desejo de contrair as núpcias validamente na Igreja, e seu desejo de santidade, então, é possível que haja uma única instância para que se torne executiva sentença”, acrescentou. 

Dom Odilo, completou que o Papa, em todo caso, ainda conserva a possibilidade de uma segunda sentença, somente quando uma das partes apela para uma segunda instância.
Custos

Sobre os custos do processo de verificação de nulidade, o Vigário judicial informou aos jornalistas que uma causa custa hoje o equivalente a sete salários mínimos e meio. Mas explicou que as pessoas que justificam não ter condições conseguem facilitação no pagamento, como o parcelamento e “o patrocínio de pessoas generosas”. “No nosso tribunal, ninguém ficou sem justiça por causa de dinheiro, mas também ninguém a conseguiu gratuitamente”, disse, ressaltando o sentido pedagógico que existe no pagamento, mesmo que mínimo do processo, bem como as despesas necessárias. “Temos despesas com correio aéreo, secretarias, luz, água, advogados, defensores, juízes, etc. Em geral, temos 26 pessoas trabalhando em uma causa”

Dom Odilo destacou que o que Papa afirma no documento é que, pagadas as justas despesas devidas do processo, este seja, na medida do possível, gratuito. Cônego Segú completou que, com a não obrigatoriedade da segunda instância e a agilidade para a conclusão dos processos breves nas causas evidentes de nulidade, há a possibilidade de uma diminuição de custos.
Colocar em prática

O Cardeal Scherer afirmou que com a reforma, haverá mudanças no trabalho dos tribunais, mas todos deverão estudar o Motu Proprio. “Teremos que estudar como por em prática isso, em primeiro lugar, cada bispo na sua diocese. Depois, no âmbito de uma província eclesiástica e, enfim, nos organizar de uma forma nova para atender essa demanda que vai surgir”.