Hoje, celebramos a Solenidade da Imaculada Conceição de Maria.
Conta-se que o Beato escocês João Duns Scoto (1266-1308),
estando diante duma imagem de Nossa senhora, rezou da seguinte maneira: dignare
me laudare te, Virgo sacrata: Virgem Santa, fazei com que eu fale bem de
vós! Em seguida, o franciscano fez as seguintes perguntas:
- A Deus lhe convinha que a sua Mãe nascesse sem a mancha do
pecado original?
Sim. A Deus lhe convinha que a sua Mãe nascesse sem nenhuma
mancha, pois é mais honroso para ele.
- Deus podia fazer que a sua Mãe nascesse sem o pecado
original?
Sim. Deus pode tudo e, portanto, podia fazer com que a sua
Mãe fosse imaculada, sem mancha.
- Aquilo que é conveniente a Deus, ele o faz ou não?
Se Deus vê que uma coisa é conveniente, que é melhor, ele a
realiza.
- Logo – exclamou Scoto –, já que para Deus era melhor que a
sua Mãe fosse imaculada e podia fazer que assim o fosse, ele – de fato – a fez
imaculada. Decuit, potuit, fecit! Convinha e Deus podia, Deus o fez!
Logicamente, esse não foi o primeiro raciocínio em torno à
verdade da Imaculada Conceição. Muitos estudiosos da ciência teológica haviam
pensado nessa verdade de fé e, não obstante, encontravam dificuldades à hora de
afirmá-la, basicamente duas: a universalidade do pecado depois de Adão e a
universalidade da redenção efetuada por Cristo. Se todos nascem com a mancha do
pecado original, como retirar a Mãe de Jesus do meio do comum dos mortais? Essa
era a primeira objeção. Ademais, Cristo salvou a todos. Afirmado o anterior,
será que a defesa da imaculada conceição não vai em contra dessa universalidade
da redenção de Cristo que atinge a todos? De fato, esses argumentos fizeram com
que alguns teólogos – como Santo Anselmo, São Bernardo, Santo Alberto Magno,
São Tomás de Aquino e São Boaventura – negassem que Maria fosse imaculada desde
a sua conceição. Logicamente, naquele tempo não havia o dogma da imaculada
conceição e, portanto, nenhum deles pode ser acusado de heresia.
Ao contrário desses grandes teólogos, Eadmero (+ 1124),
monge beneditino e discípulo de Santo Anselmo, mais atento à fé do Povo de Deus
que se sentia atingido em sua piedade quando se afirmava que Maria teve o
pecado original, ofereceu uma boa base argumentativa para defender a imaculada
conceição de Nossa Senhora. A sua maneira de pensar ajudou especialmente a
resolver a primeira dificuldade, aquela que se referia à universalidade do
pecado. Eadmero se apoiou, por um lado na analise que pode ser feita sobre a
geração do ser humano e, por outro, na onipotência de Deus. Esse autor diz que
em toda concepção há que considerar duas coisas, os pais que geram (dimensão
ativa) e o filho que é gerado (dimensão passiva). Na concepção ativa (geração)
há continuidade e, nesse sentido, transmissão do pecado; mas na concepção
passiva (a criatura que é gerada) há uma descontinuidade porque começa um novo
ser e, nesse sentido, pode dar-se a ruptura com o pecado na humanidade.
Estabelecida a possibilidade, o monge beneditino inglês apoiou-se na
onipotência de Deus para que aquilo que é possível venha a ser real. Eadmero
deixou escrito em seu “Tratado sobre a conceição de Santa Maria”: Potuit
plane et voluit; si igitur voluit, fecit”: como Deus pode e quis (romper a
cadeia do pecado e fazer imaculada a Virgem Maria), fez aquilo que quis. Talvez
essas palavras latinas – potuit, voluit, fectit: pôde, quis, fez – já
se encontravam na piedade popular que, ao parecer, cantava da seguinte maneira:
Quis e não pôde, então não é Deus;
Pôde e não quis, então não é filho;
Digam, portanto, que pôde e quis.
Com Guilherme de Ware (+ 1300), a teologia franciscana sobre
a imaculada conceição de Maria começa a andar a passos largos. Esse frei inglês
foi professor em Oxford; filósofo e teólogo, ao parecer foi mestre de João Duns
Scoto em Oxford. Guilherme oferece o argumento para resolver a segunda
dificuldade, aquela que se referia à “incompatibilidade” entre a universalidade
da redenção e a imaculada conceição de Maria. Para esse autor, Maria não teve o
pecado original porque ela foi redimida por Cristo antecipadamente, de maneira
preventiva: ela foi preservada, pelos méritos de Cristo, de contrair o pecado
original.
O “cantor do Verbo encarnado e defensor da Imaculada
Conceição”, o Beato Duns Scoto – como o definiu João Paulo II – soube unir
todas essas tendências a favor da imaculada conceição de Nossa Senhora com
grande sucesso. Bento XVI, na audiência do dia 07 de julho deste ano, quando
falou sobre o beato Duns Escoto, explicava alguns aspectos ligados a esse
dogma. A descrição do Papa é muito interessante: “Na época de Duns Escoto a
maior parte dos teólogos fazia uma objeção, que parecia insuperável, à doutrina
segundo a qual Maria Santíssima foi preservada do pecado original desde o
primeiro momento da sua concepção: de fato, a universalidade da Redenção
realizada por Cristo, à primeira vista, podia parecer comprometida por
semelhante afirmação, como se Maria não tivesse precisado de Cristo e da sua
redenção. Por isso os teólogos opunham-se a estes textos. Então, Duns Escoto,
para fazer compreender esta preservação do pecado original, desenvolveu um tema
que depois seria adoptado também pelo beato Papa Pio IX em 1854, quando definiu
solenemente o dogma da Imaculada Conceição de Maria. E este argumento é o da
“Redenção preventiva”, segundo a qual a Imaculada Conceição representa a
obra-prima da Redenção realizada por Cristo, porque precisamente o poder do seu
amor e da sua mediação obteve que a Mãe fosse preservada do pecado original.
Por conseguinte Maria é totalmente remida por Cristo, mas já antes da
concepção. Os Franciscanos, seus irmãos de hábito, aceitaram e difundiram com
entusiasmo esta doutrina, e outros teólogos – muitas vezes com juramento solene
– comprometeram-se a difundi-la e a aperfeiçoá-la”.
Depois de um longo caminho de piedade mariana imaculista e
de reflexão teológica, Pio IX, no dia 08 de dezembro de 1854, rodeado por 92
bispos, 54 arcebispos, 43 cardeais e de muitíssimas outras pessoas definiu como
dogma de fé a Imaculada Conceição da Virgem e Mãe de Deus, Maria Santíssima:
“declaramos, proclamamos e definimos que a doutrina que sustenta que a beatíssima
Virgem Maria foi preservada imune de toda mancha da culpa original no primeiro
instante da sua conceição por singular graça e privilégio de Deus onipotente,
em atenção aos méritos de Cristo Jesus Salvador do gênero humano, está revelada
por Deus e deve ser, portanto, firme e constantemente acreditada por todos os
fiéis” (Bula Ineffabilis Deus).
Logicamente, a base bíblica dessa verdade de fé católica não
pode ser mais que implícita. A inimizade entre Maria e o demônio (cfr. Gn
3,15), a plenitude de graça que há em Maria (cfr. Lc 1,28) e a benção que recai
em Nossa Senhora (cfr. Lc 1,42) são realidades que, interpretadas na Tradição
da Igreja, nos oferecem uma base sólida para contemplar, expor, viver e
defender essa verdade da nossa fé.
Ao pensar na Imaculada Conceição, eu também gosto de pensar
na pureza de vida que o Senhor pede que tenhamos e que pode resumir-se naquela
bem-aventurança que diz “bem-aventurados os puros de coração porque verão
a Deus”. Quando falamos de pureza de coração não nos referimos somente à
castidade, mas àquela disposição interior que nos deixa livres para acolher o
olhar penetrante de Deus nas nossas vidas e para que também nós, com uma
felicidade antecipada, possamos ver – agora na fé e depois na visão – o Pai e o
Filho e o Espírito Santo. A pureza do coração nos faz sensíveis às coisas do
alto; um coração sujo, ao contrário, não percebe as coisas de Deus.
Bendita seja a tua pureza,
Seja bendita eternamente.
Pois todo um Deus se recreia
Em tão graciosa beleza.
A ti, celestial princesa,
Virgem sagrada, Maria,
Eu ofereço neste dia
A vida, a alma e o coração.
Olha-me com compaixão.
Não me deixes, ó minha Mãe.
(canto mariano tradicional)
Pe. Françoá Costa