terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

A TRADIÇÃO DA VIA SACRA




A tradição da veneração e da meditação da Via-Sacra, Via Dolorosa de Jesus Cristo, desenvolveu-se e consagrou-se com a piedade cristã.

Dom Estêvão Bettencourt, OSBM, da revista ‘Pergunte e Responderemos’, de número 26, de fevereiro de 1960, fala-nos sobre a tradição do valoroso exercício de piedade que é a Via-Sacra.

Segundo o bispo, a Via-Sacra é um exercício de piedade, no qual os fiéis percorrem mentalmente o caminho de Jesus Cristo, do Pretório de Pilatos até o monte Calvário. Este exercício muito antigo, que remonta os primeiros séculos da Igreja Católica, tomou forma com o tempo, até a Via-Sacra, como conhecemos em nossos dias.

Desde os primórdios, os fiéis veneravam os lugares santos, onde viveu, morreu e foi glorificado Jesus Cristo. Peregrinos de países mais longínquos iam à Palestina para orar nesses lugares. Em consequência dessas peregrinações, surgiram narrativas, das quais as mais importantes da antiguidade são a de Etéria e a do peregrino de Bordéus, que datam do século IV. Muitos desses peregrinos reproduziam, em pinturas ou esculturas, os lugares sagrados que visitaram.

A tendência de reproduzir os lugares santos aumentou por causa das Cruzadas (século XI-XIII), a qual proporcionou a muitos fiéis a oportunidade de conhecer os lugares santos e de se beneficiar da espiritualidade desses locais. Por isso, aumentaram as capelas e monumentos que lembram os santuários da Terra Santa. Essas capelas e monumentos passaram a ser visitados por pessoas que não podiam viajar para a Cidade Santa.

Até o século XII, os guias e roteiros que orientavam a visita dos peregrinos à Palestina não tratavam de modo especial os lugares santos que diziam respeito à Paixão de Cristo. Em 1187, aparece o primeiro itinerário que seguia o caminho percorrido por Jesus. Porém, somente no final do século XIII, os fiéis passaram a separar a Via Dolorosa do Senhor em etapas ou estações. Cada uma destas era dedicada a um fato do caminho da cruz de Cristo e acompanhada por uma oração especial. Por causa da limitação dos maometanos, os cristãos passaram a ter um programa para a visita desses lugares santos, relacionados à Paixão de Cristo. 


No fim do século XIV, já havia um roteiro comum, que percorria, em sentido inverso, a Via Crucis. Este começava na Igreja do Santo Sepulcro, no Monte Calvário, e terminava no Monte das Oliveiras. As estações desse caminho eram bem diferentes da Via-Sacra atual. Alguns autores, do final do século XV, como Félix Fabri, afirmavam que este itinerário – do Calvário ao Monte das Oliveiras -, era o mesmo que a Virgem Maria costumava percorrer, recordando a Paixão de seu amado Filho Jesus Cristo.

Os peregrinos que visitavam a Terra Santa, no fim da Idade Média, testemunhavam um extraordinário fervor, pois arriscavam suas vidas na viagem e se submetiam às humilhações e dificuldades impostas pelos muçulmanos ocupantes da Palestina. Tal fervor fez com que muitos cristãos, que não podiam ir à Terra Santa, desejassem trocar a peregrinação pelo exercício de piedade realizado nas igrejas e mosteiros. Esse desejo fez com que fosse desenvolvido o exercício do caminho da Cruz de Jesus Cristo.

O fervor levou os fiéis a percorrerem o caminho doloroso do Senhor Jesus na ordem dos episódios da história da Paixão de Cristo. A narrativa da peregrinação do sacerdote inglês Richard Torkington, em 1517, mostra que, no início do século XVI, já se seguia a Via Dolorosa do Senhor na ordem dos acontecimentos. Isso possibilitava aos fiéis reviver mais intensa e fervorosamente as etapas dolorosas da Paixão. No Ocidente, as pinturas ou esculturas, das estações da Via-Sacra eram variadas. Algumas delas tinham apenas 7 ou 8 estações. Outras, contavam com 19, 25 ou até 37 estações na Via Dolorosa de Cristo. Em 1563, o livro “ A peregrinação espiritual”, de Jan Pascha, descreve uma viagem espiritual que deveria durar um ano, num roteiro que partia de Lovaina para a Terra Santa.

Cada dia dessa peregrinação era acompanhada de um tema de meditação e de exercícios de piedade. Em 1584, Adrichomius retomou o itinerário espiritual de Jan Pascha e lhe deu a forma que tem a Via-Sacra como a conhecemos hoje, ou seja, o caminho da cruz de Cristo acontece a partir do pretório de Pilatos, onde Jesus foi condenado à morte, num total de 14 estações, até o Calvário, onde morre o Crucificado.

Os franciscanos tiveram um papel importante na propagação do exercício da Via-Sacra. Desde o século XIV, estes são os guardas oficiais dos lugares santos da Terra Santa e, talvez por isso, dedicaram-se à propagação da veneração da Via-Sacra em suas igrejas e conventos. Desde o final da Idade Média, os franciscanos erguiam estações da Via-Sacra, segundo o roteiro de Jan Pascha e Adrichomius. Isto fez com que esta forma prevalecesse sobre as outras formas de devoção da Via Dolorosa de Cristo. Foram também os franciscanos que obtiveram dos Papas a concessão de indulgências ao exercício da Via-Sacra. Dentre os filhos de São Francisco, destaca-se São Leonardo de Porto Maurício, que ergueu 572 “Vias-Sacras” de 1731 a 1751.

Assim, o exercício da Via-Sacra se desenvolveu ao longo dos séculos até atingir sua forma atual, a partir da obra de Pascha e Adrichomius no século XVI. A aprovação da Santa Sé e a concessão de indulgências mostram que a veneração e a meditação da Via Dolorosa de Cristo fazem muito bem para a piedade cristã, especialmente no tempo da Quaresma. Por isso, desfrutemos dos benefícios da Paixão de Cristo como são propostos pela Via-Sacra, piedade que santifica os fiéis cristãos a tantos séculos.